DE UM PRESSUPOSTO ÉTICO HETERÔNOMO E NORMATIVO PARA UM NOVO CONCEITO ÉTICO INCLUSIVO

O atual contexto local e mundial visto especialmente sob o ângulo da Conjuntura Política socioeconômica como também religiosa, cada vez mais vem retratando um quadro que paulatinamente se desdobra para um processo de superar o cansaço que o tecido social tanto local quanto mundial sente frente ao peso dos objetivismos, fundamentalismos e de todo e qualquer extremismo. Por outro lado, esse mesmo contexto tem dado mostras explícitas nas últimas eleições no Brasil como em nível mundial, mais precisamente nos Estados Unidos, que extremismos é postura anacrônica e, por isso mesmo não pode ter espaço para a condução de qualquer sociedade civilizada e inclusiva. A sociedade principalmente após essa crise da pandemia sente que o caminho a ser traçado d’hora em diante é de uma busca consciente de novos tempos.
Ficou patente o recado dado aos extremistas de qualquer bandeira através das eleições tanto no Brasil quanto na América do Norte que o vetor principal é alimentar uma nova cultura aonde se respeite as diversidades culturais, a tolerância civil, política e religiosa, cultivando o amor, a compaixão e a solidariedade. Para atingir esse novo paradigma tem-se a premente necessidade de reinventar os princípios e valores que se perderam ao longo do tempo e se tornaram reféns desta ideologia da globalização e do mundo focado na “economia da eficiência” para um sistema econômico que seja sustentável e inclusivo. No entanto, o caminho a ser percorrido inicia com as rupturas em relação a este imaginário focado nesta economia globalizada e sob o cruel e desumano sistema neoliberal, aliás, que já provou que não responde a uma inclusividade em todas as dimensões do tecido social para promover o bem comum.
A imposição dos critérios ideológicos da globalização à cultura contemporânea “ipso facto” tem conduzido a mesma a uma desconstrução brutal e desumana, realidade esta, que está a exigir mudanças de paradigmas já, e sem titubear, com determinação e consciência de que não tem como protelar para sanar a pobreza, as doenças, os desatinos, desiquilíbrios, a fome de muitos, os sem teto e sem perspectiva de um futuro mais digno, humano, fraterno e solidário. É algo urgente.
“...as decisões políticas e o sistema legal em geral, estão desajustados em relação às exigências da sociedade que vêm sofrendo transformações profundas pela influência da própria tecnologia. [Se por um lado, a tecnologia é uma bênção, por outro, também trouxe no seu bojo distorções de natureza política e socioeconômica na Conjuntura societária]. A nova sociedade, do computador e da microeletrônica, [como] a do mercado de serviços, vem substituindo a Revolução Industrial, com a qual coexiste numa estrutura dual”. (op.cit CALDERA, Alejandro Serrano - in Silva, Ari Antônio - Ética, Espiritualidade e Cidadania Ser Cristão na cultura pós-moderna – 2019 p.133). É interessante destacar que “...uma das causas da ruptura do contrato social da sociedade contemporânea é a dissolução cada vez mais acentuada entre Estado e Sociedade Civil’. (ibidem p.134).
Por outro lado, e ironicamente a “Pandemia” tornou-se um divisor de águas, pois querendo ou não admitir obrigou “o todo” da sociedade a rever os valores e contravalores daquilo que possivelmente tem gerado essa desigualdade socioeconômica para um descalabro sem precedentes da “gestão pública” eivada de Estadistas, salvo sempre as exceções, que não estão comprometidos com o bem comum da nação, não apenas em nível local, mas também internacional.
Portanto, são tempos de revisão como de tomar medidas sensatas com seriedade. Afinal é um quadro que envergonha todo homem e mulher que possuem princípios éticos e que aspiram a um mundo justo e solidário, aliás, e ao mesmo tempo, que trazem no perfil de cada um o senso da justiça, a retidão de caráter e do respeito à dignidade humana.
O resultado eleitoral próximo passado tem sido sem dúvida, um grito para a mudança de paradigma como trouxe às claras uma realidade que qualquer cidadão consciente e crítico percebe nitidamente que: “...a separação do econômico do jurídico nos leva a supor que o direito não seja necessário para regular os processos de economia”. (ibidem SILVA, 2019 p.136). E segue: “...é urgente sanar estas rupturas e fortalecer a sociedade civil, assim como os mecanismos de organização e participação cidadã. Sem essa consciência não se conseguirá evitar uma realidade que aí está, ou seja, uma sociedade corporativa que por definição e pela experiência tem sido antidemocrática.
Chega-se a uma triste constatação a se ver e perceber uma realidade aonde: “...a política tornou-se um exercício de castas de poder, de artimanhas e artifícios para consegui-lo, da separação entre o discurso e a ação, pois [...] a habilidade política consiste em fazer o que não se diz e dizer o que não se faz”. (ibidem).
“UMA ÉTICA QUE NÃO RECONHECE SUA GENEALOGIA FECHA-SE EM SI MESMA E EXCLUI TUDO O QUE NÃO PERTENCE AO SEU ESCOPO”
O filósofo Márcio Junglos em seu livro “Fenomenologia da Inclusividade” publicado em 2014 nos conduz a uma reflexão interessante e profunda ao questionar alguns pontos conceituais de ética que no decorrer da história tiveram um papel determinante no comportamento do tecido social. Pergunta-se: Por que e em que? Pelo fato de que no conceito das mesmas não se percebe uma ligação sistemática com a existência da vida como um todo e, portanto, se apresenta de forma abstrata e formal, prescindindo do lado da vida em si, mas, por outro lado, deixa entrever que são princípios éticos inseridos numa determinada cultura do qual não mais se encaixa no hoje da história. Daí o desenvolvimento dessa nova visão de ética focada “no todo da vida”, e, fundamentada na realidade da pessoa concreta. Portanto, não se trata de trata de uma ética simplesmente conceitual e, sim, voltada e em sintonia com a própria história em âmbito mais universal dado que todo o ser humano é o rosto de Deus. (Gn 1,27).
Ora, no contexto do pensamento contemporâneo ao lê-se o momento histórico há nitidamente uma crise de sentido e o tecido social se encontra num cruzamento exaustivamente trágico e complexo. Daí infere-se que é necessário à ética não permanecer apenas em generalidades, mas sim, dar um passo a mais do que simplesmente conceituá-la de maneira formal, sistemática e abstrata.
Em contrapartida, segue também a urgência em desenvolver uma “nova filosofia da história”, assunto este, muito bem abordado por Héctor Samour professor e pesquisador da UCA (Universidade Católica de El Salvador) num artigo publicado recentemente cujo título é: (Possibilidade de uma filosofia crítica da história, depois da crise da “filosofia da história”). Este será um tema que se abordará em outros artigos num futuro próximo. Ver-se-á nesse tema em sintonia com uma nova filosofia da história sob a ótica da “fenomenologia da inclusividade”.
A confluência dos dois aspectos abordados, ou seja, uma ética inclusiva e uma nova “filosofia da história” menos europeia e com a diversidade também de outros rostos e que, ao mesmo tempo, reproduz o colorido fascinante do humano através das diferentes culturas com suas ricas simbologias. Portanto, chama a atenção nesse processo a íntima relação no que diz respeito à uma ética de inclusão como também do seu papel transformador enriquecendo a história da humanidade.
O grande inspirador da fenomenologia da inclusividade abordada por Márcio Junglos parte de Bernhard Waldenfels. Professor emérito do Intitute for Philosophy Ruhr University, Germany. Waldenfels estudou filosofia, psicologia, filologia clássica e história em Bonn, Insbrug y Munique. Doutorou-se em Munique. Co-fundador da Sociedade Alemã de pesquisa fenomenológica. Professor visitante em Rotterdam (1982) Paris (1984) New York School (1987), Roma 1989 e em 2004 também na Universidade Chinesa de Hong Kong. Publicou muitas obras que influenciou muito para uma visão mais aberta ao pensamento contemporâneo.
Outro pensador que influencia a obra de Márcio Junglos é Merleau Ponty quando afirma que: “...o conceito de razão se transforma, quando passa a andar junto com a “desrazão”. Na prática significa que a mesma não é desencarnada [como] não flutua fora do mundo concreto. Trata-se de “formar uma nova ideia de razão”. O corpo tem uma co-naturalidade com o mundo, ele lhe é familiar, orienta-se e caminha nele sem que para isto se valha de uma consciência cognitiva. Portanto, para Merleau Ponty, a intencionalidade da consciência perceptiva que habita o sujeito perceptivo não é um “eu penso”, mas um “eu-posso”. (fonte: PEGORARO, Rossano (org.)- Os Filósofos Clássicos da Filosofia – Vol. III de Ortega Y Gasset a Vattimo artigo de Leandro Neves Cardin- Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo- USP – Ed PUC/Rio e Vozes – 2009 p.169ss).
Partindo desse pressuposto segue-se uma reflexão sobre a questão da ética analisada de um ponto de vista crítico a Aristóteles, Kant e Suartt Mill. Nos próximos textos sem esgotar a reflexão quer-se analisar a “Ética à Nicômaco” de Aristóteles e posteriormente Kant e Stuart Mill. Tentar-se-á mostrar que os princípios aos quais norteiam tais éticas vão revelar que “... [lhes faltam] o caráter inclusivo [e] que, segundo nossa compreensão, torna-se indispensável para qualquer proposta ética que venha requerer alcance na contemporaneidade”. (JUNGLOS, Márcio – Fenomenologia da Inclusividade – Ed. Nova Harmonia – 2014 p.17). E segue: “...estamos cientes de que tais éticas tiveram sua representatividade em sua época, se quisermos esboçar suas contribuições para nossa prática cotidiana atual, devemos estar cientes de suas falhas inclusivas”.
Em que consiste a inclusividade da ética? Sua abertura à horizontalidade da vida, e, por essa mesma razão quer significar que jamais a mesma pode ser reduzida a um relativismo e nem a um objetivismo, e, muito menos a um subjetivismo. Então é preciso frisar que: “...o mundo-da-vida deve ser pensado como horizonte de todas as nossas experiências, onde ele próprio se apresenta a nós na forma originária, sendo este o fundamento de toda a ciência”. (JUNGLOS, 2014 p.25).
Um dos aspectos que chama a atenção nessa fenomenologia da inclusividade é o destaque que essa tese contribui na construção de uma nova visão de ética, e fica bem explícito quando o autor busca superar os binômios que eventualmente bloqueiam toda a possibilidade para não permitir “o novo” nessa abertura. Desta maneira trata-se de: “...evitar que se caia no paradoxo do dentro/fora, ou seja, realidade externa/consciência interna”. (ibidem p.26).
A posição de Husserl é levada adiante com uma nova leitura elaborada por Waldenfels que acaba proporcionando uma “...perspectiva para um novo olhar filosófico, visando mais ao sentido de possibilidade que a perspectiva do absoluto e da análise para a solução de problemas”. (JUNGLOS, 2014 p.34).
E segue:
“...é indispensável para uma abordagem ética inclusiva que possa promover a vida nos seus mais variados aspectos. Esse ideal é expresso por seu caráter aberto do ainda não absoluto, do ainda não possível de síntese total”.
Já tenho abordado a importância do método fenomenológico de Husserl para a compreensão do Mistério da Encarnação, num artigo publicado em 26/07/2020 cujo título foi: Um novo suporte para a compreensão da revelação: A teologia contemporânea e a filosofia fenomenológica, quando Deus entra na história humana e se torna gente, assumindo a natureza humana e com isso dignificando o “humano”. Como bem coloca Junglos em seu livro: Hermenêutica inclusiva- publicado pela Editora Nova Harmonia em 2019 e também em outra obra cujo titulo é: “Fenomenologia da Inclusividade publicado em 2014: “...o método fenomenológico trará a possibilidade de pensar pressupostos menos técnicos e mais humanos para o futuro da civilização [...] seremos libertos da ideia de um solipsismo para que a atitude se abra à intersubjetividade. Em outras palavras: Se abra à necessidade do outro. Dessa forma, o Eu em sua identidade é um ser de abertura, interagindo com a necessidade do mundo-da-vida. (JUNGLOS, 2014 p.40).
Dentro de toda essa reflexão que não pretende esgotar o assunto, aliás, o que seria uma incoerência já que a hermenêutica inclusiva propõe exatamente a não absolutização de regras e princípios para gerir um mundo novo com novas formas de relações interpessoais. No entanto, não se quer dizer que tal postura parta inexoravelmente para um relativismo, ao contrário, quer-se buscar o equilíbrio entre a normatividade e a vida do ser humano como um todo.
Portanto:
“...no caso da ética, trata-se de propor uma renovação da pessoa e da cultura, pois a guerra revelou a miséria moral e religiosa da humanidade. Ela revelou, igualmente, nossa miséria filosófica. A insensatez da cultura é um “fato” que deve determinar a nossa conduta prática. Ela nos faz refletir sobre questões de princípios concernentes à vida prática – indivíduo, comunidade e vida racional de um modo geral. (op cit = Fabri, Marcelo – Fenomenologia e cultura: significado crítico e limites da ideia husserliana de Europa – Filosofia Unisinos, POA, v.8,n.,p.164, 2007- in JUNGLOS, Márcio – Fenomenologia da Inclusividade 2014 Ed. Nova Harmonia pp.40-41).
Sempre é bom pensar e questionar as escolhas e/ou convicções, regras e princípios que muitas vezes querem impor sobre a sociedade ideologias de dominação e não de construção da fraternidade através do amor, da solidariedade e do bem comum de todos os seres humanos. É preciso estar atentos para o que nos move à determinadas regras e normatividades. É de interesse somente de alguns ou que buscam um consenso de respeito ao outro e ao diferente?
(continua no próximo artigo).